O Amado e a Amada

Texto base: Cântico dos Cânticos 8.6-7

Introdução

O livro é o “Cântico dos Cânticos” de Salomão (Ct 1.1), isto é, o seu mais excelente e belo cântico, e não foram poucos os que ele escreveu (1005 cânticos, além de 3000 provérbios, conforme 1Rs 4.32). Assim como no livro de Ester, o nome de Deus não é mencionado. Não é correta a espiritualização deste livro, como se fora uma alegoria para ilustrar o relacionamento e o amor mútuo entre Deus e sua igreja, pelo menos, não há evidências de que teria sido escrito originalmente com este propósito. É claro que, eventualmente, é possível encontrar aqui alguns pontos de semelhança entre “o amado e sua amada” e “Cristo e sua noiva (a igreja)”. É um livro da bíblia diferenciado que poeticamente celebra o amor mútuo entre um homem e uma mulher, entre o Amado e a Amada, entre Salomão e a Sulamita. Se o cântico é uma ficção ou referência a uma situação real, não sabemos. Se essa Sulamita é a jovem Abisague, a jovem virgem Sunamita “sobremodo formosa” que cuidou de Davi na sua velhice, não sendo por ele possuída (1Rs 1.1-4) e pretendida por Adonias, custando-lhe a vida (1Rs 2.13-24), não sabemos. É significativo que a palavra “amado” ocorre no livro 38 vezes.

Portanto, o tema é o amor entre um homem e uma mulher, que poderia ser assim descrito:

Num reino antigo, num cenário campestre envolvendo vinha e pastoreio de rebanhos, floresceu um amor ardente e profundo entre um rei sábio e uma formosa camponesa. O rei, cuja sabedoria era tão vasta quanto sua riqueza, era conhecido como Salomão. A camponesa, cuja beleza era tão radiante quanto sua humildade, era chamada de Sulamita. Desde o momento em que seus olhares se encontraram, os corações de Salomão e da Sulamita foram capturados por um amor que transcendia os limites do tempo e do espaço. Numa primavera (Ct 2.10-13), entre os campos dourados de trigo e os jardins perfumados de flores, eles se encontravam, trocando juras de amor sob a luz do sol e à sombra das árvores. As trocas de palavras do amor deles ecoavam pelas montanhas e vales, como uma sinfonia celestial entoada pela própria natureza. Cada palavra, cada suspiro, era como uma promessa eterna de devoção e paixão.

Assim, o Cântico dos Cânticos é uma exaltação ao amor puro e intenso, uma celebração da beleza do amor humano em sua forma mais divina e transcendente. É a exalação de sentimentos, desejos, medos, dúvidas, sonhos, saudade, paixão, típicos dos enamorados. É a celebração da sexualidade com compromisso, no casamento. A beleza física é frequente e cuidadosamente referida e enaltecida, com o uso de metáforas tiradas do ambiente natural em que viviam, um tanto quanto estranhas e nada românticas para os padrões atuais: “Os teus cabelos são como o rebanho de cabras que descem ondeantes do monte de Gileade.” (Ct 4.1c).

O cântico se desenvolve com sucessivas e alternadas falas carregadas de ardente paixão, adornadas de expressões que envolvem os cinco sentidos (visão, audição, paladar, olfato e tato):

Beijo – “Beija-me com os beijos de tua boca” (Ct 1.2a).

Cheiro – “Suave é o aroma dos teus unguentos,” (Ct 1.3a).

Abraço – “A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a direita me abrace.” (Ct 2.6; 8.3). 

Voz – “Ouço a voz do meu amado;” (Ct 2.8a). faze-me ouvir a tua voz, porque a tua voz é doce, e o teu rosto, amável.” (Ct 2.14c).

Olhar – “arrebataste-me o coração com um só dos teus olhares, com uma só pérola do teu colar.” (Ct 4.9b; vtb 6.5a).

Sabor – “Os teus beijos são como o bom vinho,” (Ct 2.3).

Caminhar e molejo – “Que formosos são os teus passos dados de sandálias, ó filha do príncipe! Os meneios dos teus quadris são como colares trabalhados por mãos de artista.” (Ct 7.1)

Uma adequada incursão no texto deste intrigante livro, nos permite explorar e desvendar um pouco mais os mistérios do amor, que permanece como um farol de esperança e inspiração para todas as gerações que buscam o seu verdadeiro significado.

Desenvolvimento:

1. O COMPROMISSO DE AMOR

“Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço,…” (Ct 8.6a)

A fala é da mulher, da esposa para o seu amado marido. Qual o sentido e significado da sua proposta?

Nos tempos antigos, o ato de “selar” tinha diversos significados e aplicações, muitos dos quais eram relacionados à autenticidade, segurança e autoridade. Selar um documento, carta ou contrato era uma maneira de garantir sua autenticidade e integridade. Um selo, geralmente feito de cera quente ou outro material, era aplicado sobre o fecho de uma carta ou sobre a borda de um documento, indicando que não havia sido violado e que seu conteúdo era confiável. Selar algo podia servir como uma marca de propriedade ou identificação. Por exemplo, selos eram frequentemente usados em mercadorias comerciais para identificar o proprietário ou o fabricante, ou em documentos legais para indicar a origem ou o responsável por sua emissão.

A ideia e intenção é que seu amado carregasse, em todo o tempo, no seu próprio corpo, uma autêntica, inequívoca, indelével e visível marca dela. Sobre o coração, como sede da vida e dos sentimentos; sobre o braço, como símbolo de força e trabalho dedicados ao provimento do seu lar. Era uma proposta legitima de compromisso de amor, com exclusividade, que por sinal destoava muito da poligamia vivida por Salomão.  

“Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu;…” (Ct 6.3a)

Por três vezes ela se declara pertencer ao seu amado e, em duas, que o seu amado era dela (Ct 2.16; 6.3; 7.10). Esse mútuo pertencimento expressa lindamente o conceito e fundamento do casamento, de ser uma só carne (Gn 2.24), o que encontra eco no ensino do apóstolo Paulo (1Co 7.3-4).

2. A FORÇA DO AMOR

 “porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura, o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, são veementes labaredas.” (Ct 8.6b)

A frase “o amor é forte como a morte” é uma expressão poética e metafórica que destaca a intensidade e a permanência do amor, equiparando-o à força inegável da morte. Essa metáfora pode ser assim exemplificada:

1º) Assim como a morte é uma força universal poderosa e inevitável que não pode ser ignorada, o amor é retratado como algo igualmente forte, universal e irresistível. Ele pode consumir uma pessoa completamente, dominando seus pensamentos, sentimentos e ações.

2º) Assim como a morte não pode separar as pessoas na lembrança dos seus entes queridos, o amor é retratado como uma força que une duas pessoas de maneira tão forte que nada pode separá-las.

3º) Assim como a morte põe um ponto final nas expectativas e escolhas da vida, o amor autêntico e verdadeiro põe um ponto final nos anseios e na procura da pessoa amada que, ao ser encontrada, promove uma ligação profunda e indissolúvel entre o amado e a amada.

“e duro como a sepultura, o ciúme;”

O ciúme, aqui comparado à sepultura, é uma deturpação ou anomalia do amor, tão danosa e cruel.

O ciúme é uma reação à percepção de uma ameaça real ou imaginária ao relacionamento, posse ou afeto de uma pessoa por outra. Essa reação pode ser desencadeada por diversos fatores, como o medo de perder a atenção, o carinho ou a lealdade do(a) amado(a) para alguém ou algo considerado uma ameaça. O ciúme pode se manifestar de diferentes formas e em diferentes graus, desde sentimentos leves de insegurança até reações extremas de possessividade, raiva e comportamento controlador. Torna-se insuportável quando a desconfiança em relação ao outro, leva a uma vigilância constante, questionamentos repetidos e investigações para confirmar ou refutar as suspeitas. Pode desencadear uma série de reações emocionais, incluindo ansiedade, tristeza, raiva, ressentimento e até mesmo depressão, levando ao fim do relacionamento. Portanto, é importante reconhecer e compreender o ciúme, comunicar-se abertamente com o outro e trabalhar juntos para construir uma relação de confiança e segurança mútuas.

Um aspecto normal e natural do ciúme, motivado pelo legítimo sentimento de “posse com exclusividade”, é aquele cuidado, preocupação e acompanhamento do(a) amado(a). Neste sentido, o ato do simples flertar com alguém ou algo, pode despertá-lo no outro cônjuge. É o receio de que o ente amado dedique seu afeto a outrem; o que não deixa de ser um zelo aceitável. Neste sentido é que se pode entender  o “ciúme ou zelo de Deus”, pelo seu povo (Ez 8.3; Tg 4.5).

Este amor, assim tão forte, tem algumas características delineadas neste cântico:

1ª) Precisa acontecer naturalmente:

“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira.” (Ct 8.4)

Neste livro, por três vezes encontramos a expressão “não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira.” (Ct 2.7; 3.5; 8.4). Isso nos remete ao início do amor, à sua origem, à forma como ele acontece, ao momento em que ele acorda. Ele deve acontecer naturalmente, de forma espontânea, pois não pode ser forçado. Um relacionamento que nasce de interesses escusos (financeiro, poder etc.) ou equivocados (rebeldia e pressa em deixar a casa paterna; busca de liberdade; desejo de ter filhos; vontade de mudar de cidade, estado ou país etc.), não redundam nesse amor poderoso.

2ª) Precisa ser alimentado:

Depois que nasce, o amor precisa ser alimentado e fortalecido, tal qual um novo ser. Neste cântico, chama a atenção as sete falas de lisonjeio do amado à sua amada (Ct 1.9-10; Ct 1.15; Ct 2.2; Ct 2.14; Ct 4.1-15; Ct 6.4-10; Ct 7.1-9) e cinco da sua amada ao seu amado (Ct 1.13-14; Ct 1.16; Ct 2.9; Ct 2.17; Ct 5.10-16). O reconhecimento do outro e de suas atitudes, bem como o uso da “pedagogia do elogio” são atitudes muito bem-vindas. Uma boa dieta para nutrir o amor é a valorização do cônjuge, não apenas com palavras vazias que se perdem no ar, mas com gestos e atitudes concretas e práticas. O amor é muito mais do que a manifestação de sentimentos; envolve a dedicação e doação ao cônjuge.  

3ª) Precisa ser protegido:

“Apanhai-me as raposas, as raposinhas, que devastam os vinhedos, porque as nossas vinhas estão em flor.” (Ct 2.15)

As raposas e outros animais são conhecidos por sua ação destruidora nos plantios. Os ataques de animais a uma plantação e os desafios enfrentados em um relacionamento conjugal têm algumas semelhanças:

– Assim como os animais podem gradualmente destruir uma plantação, os problemas e conflitos não resolvidos podem corroer lentamente a saúde de um relacionamento conjugal ao longo do tempo, minando a confiança e a intimidade.

– Da mesma forma que os agricultores precisam proteger sua plantação contra pragas e animais invasores, os cônjuges precisam estar atentos às ameaças externas e internas, e agir preventivamente, tomando medidas adequadas para proteger seu relacionamento, desenvolvendo habilidades para lidar com os desafios que surgem ao longo do caminho.

– Assim como os agricultores precisam reparar os danos causados ​​pelos ataques à sua plantação, os casais também precisam trabalhar juntos para reparar os danos causados ​​por conflitos e desentendimentos, buscando a reconciliação e a restauração do relacionamento.

Em resumo, a analogia entre os ataques de animais a uma plantação e os desafios enfrentados em um relacionamento conjugal destaca a importância da proteção, manutenção, reparação e cuidado contínuo para preservar e fortalecer os laços afetivos e construir um relacionamento duradouro e harmônico.

3. A SOLIDEZ DO AMOR

“… as suas brasas são brasas de fogo, labaredas do SENHOR.“ (Ct 8.6)
“As muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios, afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens da sua casa pelo amor, seria de todo desprezado.” (Ct 8.7)

Há labaredas divinas no amor que, partindo do céu alcançam a terra, porque, afinal, Deus é amor. 

O amor é indestrutível

As torrentes de água não podem extinguir as chamas do amor, nem mesmo os dilúvios mais intensos podem afogá-lo. Mesmo diante das dificuldades, desafios e mudanças da vida, o amor pode persistir e resistir ao teste do tempo. É fato a força descomunal da correnteza das águas inundantes, arrastando e destruindo tudo o que encontram pela frente. Entretanto, a metáfora ressalta a implacável capacidade de resistência do amor a qualquer tipo de ataque. Também é fato que muitos relacionamentos se desfazem. No entanto, aqueles que foram unidos por um amor verdadeiro e autêntico permanecerão firmes. Nenhuma força terrena poderá separá-los, e nenhum poder celestial teria o desejo de fazê-lo.

O amor é inegociável

O amor não pode ser comprado ou subornado, e as tentativas podem se dar de muitas formas.  O verdadeiro amor  jamais cederá às investidas de terceiros com suas cantadas sedutoras, sua beleza estonteante, oportunidade de ascensão social ou  prosperidade financeira. Se um relacionamento de namoro ou noivado ou o casamento é abalado quando entra em cena outra pessoa que tenha dinheiro é porque não existe ali um amor maduro e verdadeiro. Por outro lado, com dinheiro pode se comprar sexo e acompanhante, profissional ou não. Não são poucos os casos em que o verdadeiro amor é relegado a um segundo plano, ou totalmente ignorado, em prol de um bem-estar financeiro e projeção social.

No texto em análise, a simples tentativa de comprar o amor, oferecendo um alto e substancial preço, tornaria o pretendente alguém desprezado. O amor genuíno é como um tesouro oculto no coração, de valor inestimável. São dignos de destaque e honra aqueles casos de casais simples,  que não se rendem aos apelos sedutores já mencionados; antes, porém, unem seu amor e seus esforços e, ao longo da vida, realizam seus sonhos de um casamento feliz, de uma família bem estruturada e a da desejada e necessária estabilidade financeira. Porque a força do amor, também é maior do que a força do dinheiro. 

Se o amor não pode ser comprado, pode ser conquistado. E é conquistado quando é livremente dado. O amor emana de Deus e é insuflado como fruto do Espírito (Gl 5.22). É o elo que nos une em torno do mistério da existência. Onde houver vida, haverá também o verdadeiro amor. Ele não se submete ao tempo, nem reconhece barreiras ou obstáculos.

“O amor não se desvanece com as horas fugazes ou o passar dos dias, mas suporta tudo, até mesmo diante da iminência da condenação. Se isso for um equívoco e se provar que estou errado, então nunca mais ousarei escrever, pois nenhum homem jamais conheceu o verdadeiro amor.” (parafraseando Shakespeare)

Conclusão

Temos discorrido sobre o compromisso inarredável do amor, inspirando aquele saudável sentimento de “posse mútua e exclusividade”. É oportuno destacar o apreço mútuo, em que cada um dos enamorados se expressa distinguindo-o dos demais. Ele diz: “Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas.” (Ct 2.3). E, ela responde: “Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens; desejo muito a sua sombra e debaixo dela me assento, e o seu fruto é doce ao meu paladar.” (Ct 2.3). E, ele, mais adiante, ainda diz: ”Sessenta são as rainhas, oitenta, as concubinas, e as virgens, sem número. Mas uma só é a minha pomba, a minha imaculada, de sua mãe, a única, a predileta daquela que a deu à luz; viram-na as donzelas e lhe chamaram ditosa; viram-na as rainhas e as concubinas e a louvaram.” (Ct 6.8-9)

Também fomos lembrados que, tal como a morte, o amor é forte, universal e irresistível, capaz de manter duas pessoas unidas; que o ciúme exacerbado é uma anomalia do amor e deletéria ao relacionamento; que o amor precisa acontecer naturalmente e precisa ser fortalecido com palavras e ações.

Finalmente, abordamos que o amor é indestrutível e inegociável. Ainda que surjam quaisquer dificuldades e obstáculos, com a devida paciência, compreensão, sabedoria, perdão e auxílio do alto, do Deus Eterno, tudo pode ser superado, pois o amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (1Co 13.7).  

Que Deus nos ajude!

Bibliografia

1. Bíblia Sagrada (SBB – Versão Revista e Atualizada).
2. Bíblia Online – SBB.
3. Revista CRESCENDO JUNTOS (Ed. Didaquê).
4. Alexander, Pat e David – Manual Bíblico SBB (SBB).
5. Unger, Merrill Frederick – Manual Bíblico UNGER (Vida Nova).
6. R. N. Champlin, Ph. D. – O Antigo Testamento Interpretado – Versículo por versículo (Ed. Hagnos).
7. Internet / ChatGPT.