Sete grandes realidades e uma cura

Marcos 9.14-29; Mateus 17.14-21; Lucas 9.37-43a

1ª) Um grande pastor
     Que se aproximava de Deus e do povo.

37  No dia seguinte, ao descerem eles do monte, veio ao encontro de Jesus grande multidão. (Lc 9)
14  Quando eles se aproximaram dos discípulos, viram numerosa multidão ao redor e que os escribas discutiam com eles. (Mc 9)
15  E logo toda a multidão, ao ver Jesus, tomada de surpresa, correu para ele e o saudava. (Mc 9)
16  Então, ele interpelou os escribas: Que é que discutíeis com eles? (Mc 9)

Jesus acabara de passar por um singular momento de glória, no monte da transfiguração (Mc 9.2-13). Ali o céu baixara à terra para o honrar. Diante da aparição de dois grandes vultos do passado, Moisés (representando a Lei) e Elias (representando os Profetas) e dos dignos discípulos ali presentes (representando a Igreja), o Pai se manifestou e revelou o Filho, distinguindo-o e apontando-o como aquele que deveria ser ouvido.

Não havia melhor lugar para se estar. No entendimento de Pedro, o tempo podia até parar e, assim eles desfrutariam ao máximo aquele pedacinho de céu. Entretanto, o grande pastor de almas – Jesus – sabia que lá embaixo havia um rebanho aflito necessitado da sua presença.

Ao pé do monte estavam os demais discípulos, e com eles uma grande multidão. Na ausência de Jesus, algo havia acontecido que ocasionou uma grande discussão entre os discípulos que ficaram e os escribas. De tal forma estavam todos envolvidos com a discussão que a multidão se surpreendeu com a chegada Jesus. Aqui reside um interessante elemento profético: aqueles que se detêm em tantas discussões teológicas e/ou doutrinárias correm o risco de serem tomados de surpresa quando da segunda vinda de Cristo.

É interessante observar que quando Jesus chegou, imediatamente o foco de interesse passou para ele. Entretanto, para Jesus, o foco de interesse era o objeto da discussão: “Que é que discutíeis com eles?”

2ª) Um grande problema
     De dimensões física e espiritual.

17  E um, dentre a multidão, respondeu: Mestre, trouxe-te o meu filho, possesso de um espírito mudo; (Mc 9)
18a  e este, onde quer que o apanha, lança-o por terra, e ele espuma, rilha os dentes e vai definhando. (Mc 9)
14  E, quando chegaram para junto da multidão, aproximou-se dele um homem, que se ajoelhou e disse: (Mt 17)
15  Senhor, compadece-te de meu filho, porque é lunático e sofre muito; pois muitas vezes cai no fogo e outras muitas, na água. (Mt 17)
38  E eis que, dentre a multidão, surgiu um homem, dizendo em alta voz: Mestre, suplico-te que vejas meu filho, porque é o único; (Lc 9)
39  um espírito se apodera dele, e, de repente, o menino grita, e o espírito o atira por terra, convulsiona-o até espumar; e dificilmente o deixa, depois de o ter quebrantado. (Lc 9)

A resposta à indagação de Jesus vem logo, do meio da multidão. Um pai desesperado se aproxima de Jesus e lhe conta o grande e grave problema vivido por seu filho único. Ele descreve, com detalhes, todo o sofrimento passado pelo filho quando o espírito imundo se apodera dele. Lunático, surdo-mudo e com sintomas que se assemelhavam aos da epilepsia (descarga cerebral), no seu estado mais grave.  Mateus revela que esse pai se ajoelha diante de Jesus e lhe suplica compaixão.

3ª) Uma grande decepção
     Tentar fazer aquilo que só Jesus pode fazer.

18b  Roguei a teus discípulos que o expelissem, e eles não puderam. (Mc 9)
16  Apresentei-o a teus discípulos, mas eles não puderam curá-lo. (Mt 17)
40  Roguei aos teus discípulos que o expelissem, mas eles não puderam. (Lc 9)

O pai declara inicialmente que tinha trazido o filho para que Jesus curasse (Mc 9.17). Naturalmente, não encontrando Jesus ali, pediu ajuda aos discípulos que não haviam subido ao monte. É difícil concluir quem ficou mais decepcionado com a fracassada tentativa dos discípulos:

🔹 O pai, que não conseguiu a tão necessitada solução para o problema.
🔹 Os discípulos, que não foram capazes de fazer o que já tinham feito antes.
🔹 A multidão, que certamente esperava muito mais dos discípulos.

Para os escribas, é provável que estivessem procurando tirar proveito do fracasso dos seguidores de Cristo para levar vantagem e denegrir a imagem e a doutrina de Jesus.

4ª) Um grande desabafo
     Somos poupados pela misericórdia de Deus.

19  Então, Jesus lhes disse: Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei? Trazei-mo. (Mc 9)
17  Jesus exclamou: Ó geração incrédula e perversa! Até quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei? Trazei-me aqui o menino. (Mt 17)
41  Respondeu Jesus: Ó geração incrédula e perversa! Até quando estarei convosco e vos sofrerei? Traze o teu filho. (Lc 9)

A quem Jesus dirigiu o seu desabafo: aos discípulos, aos escribas, ao pai ou à multidão?

Suposições, para debate.

– Aos discípulos:

✔👍Porque o fracasso dos discípulos expunha Jesus ao ridículo.

✔👍Porque eles tentaram aproveitar a oportunidade da ausência de Jesus para exibirem poder diante da multidão e Deus não os atendeu.

✔👍Porque eles ficaram com ciúme por não terem sido convidados a subir o monte com Jesus.

✔👍Porque em casa Jesus confirmou que eles não conseguiram por causa da pequenez de sua fé;

❌👎Porque Jesus não seria capaz de acrescentar à tamanha humilhação porque estavam passando, o rótulo de incredulidade e de perversidade, diante de todos;

❌👎Porque eles agiram por solidariedade à aflição daquele pai e tentaram libertar aquele jovem de tamanho sofrimento, cooperando assim com o ministério de Jesus;

❌👎Porque Jesus não chamaria seus discípulos, a quem ele mesmo escolheu, de perversos.

❌👎Porque em casa Jesus confirmou que eles não conseguiram por se tratar de uma casta de demônios diferente, que exige muita oração e jejum;

❌👎Porque o Espírito Santo ainda não havia sido derramado sobre eles, para habitação permanente e unção com poder.

– Aos escribas:

✔👍Porque é provável que estivessem procurando tirar proveito do fracasso dos seguidores de Cristo para levar vantagem e denegrir a imagem e a doutrina de Jesus.

❌👎Porque a discussão girava em torno de encontrar uma solução para o problema. Eles também queriam ajudar.

– Ao pai:

✔👍Porque ele não tinha certeza de que Jesus poderia fazer aquele milagre, pois falou “se podes…”

❌👎Porque Jesus não seria capaz de humilhar uma alma aflita que se chega a ele suplicando por ajuda.

– À multidão:

✔👍Porque ela seguia a Jesus só por interesse material e Jesus já estava cansado dessa hipocrisia.

❌👎Porque Jesus tinha o interesse de aproximá-la para a orientar e não de despedi-la.

Não podemos afirmar com convicção quem era o destinatário dessa palavra dura de Jesus. Entretanto, temos certeza de que cada um que a ouviu e a ouvir ainda hoje, podia e poderá tomá-la como para si próprio, pois todos temos alguma incredulidade.

5ª) Um grande confronto
    Cósmico e humano.

42a  Quando se ia aproximando, o demônio o atirou no chão e o convulsionou;(Lc 9)
20  E trouxeram-lho; quando ele viu a Jesus, o espírito imediatamente o agitou com violência, e, caindo ele por terra, revolvia-se espumando. (Mc 9)
21  Perguntou Jesus ao pai do menino: Há quanto tempo isto lhe sucede? Desde a infância, respondeu; (Mc 9)
22  e muitas vezes o tem lançado no fogo e na água, para o matar; mas, se tu podes alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos. (Mc 9)
23  Ao que lhe respondeu Jesus: Se podes! Tudo é possível ao que crê. (Mc 9)
24  E imediatamente o pai do menino exclamou, com lágrimas: Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé! (Mc 9)

Há dois confrontos sendo travados aqui:

1º) Jesus com o demônio.
Finalmente o jovem foi trazido à presença de Jesus. Ao aproximar-se de Jesus o demônio ficou transtornado e promoveu um terrível espetáculo. Jesus reage com tranquilidade a toda a agitação do demônio. Ele não se deixa impressionar com aquela aparente demonstração de poder. Jesus deixa de lado o demônio e concentra-se naquele pai.

2º) O pai com sua (falta de) fé.
Jesus conversa com aquele pai sobre o histórico do problema. Aquele pai, demonstra estar totalmente focado no problema e em qualquer tipo de solução, ainda que paliativa: “se tu podes alguma coisa…”.

Ele se contentava com qualquer coisa, porém, Jesus só se contentava com uma fé integral. Jesus dá a entender que só prosseguiria se ele declarasse sua fé no poder de Deus.  

Ele buscava uma solução sem ter que assumir qualquer compromisso. Conhece gente assim? Jesus o insere como corresponsável para a solução do problema. A fé dele era elemento indispensável para a realização do milagre. Jesus devolve o “se podes” e acrescenta, “tudo é possível ao que crê”. No ápice da crise, em lágrimas, ele, finalmente, declara sua fé ao mesmo tempo em que suplica ajuda pela sua incredulidade.

Ele oferece o que tem pede ajuda pelo que falta. Essa demonstração de sinceridade e humildade foi aceita por Jesus.

6ª) Uma grande libertação
    Nada pode resistir à ordem de Jesus!

25  Vendo Jesus que a multidão concorria, repreendeu o espírito imundo, dizendo-lhe: Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: Sai deste jovem e nunca mais tornes a ele. (Mc 9)
26  E ele, clamando e agitando-o muito, saiu, deixando-o como se estivesse morto, a ponto de muitos dizerem: Morreu. (Mc 9)
27  Mas Jesus, tomando-o pela mão, o ergueu, e ele se levantou. (Mc 9)
18  E Jesus repreendeu o demônio, e este saiu do menino; e, desde aquela hora, ficou o menino curado. (Mt 17)
42b mas Jesus repreendeu o espírito imundo, curou o menino e o entregou a seu pai. (Lc 9)
43a  E todos ficaram maravilhados ante a majestade de Deus. (Lc 9)

Era hora de agir. A multidão já se agitava. Jesus não fala ao demônio, ele ordena a sua retirada definitiva. A reação demoníaca é muito espalhafatosa, como que para dar a entender que a ordem não funcionara, como que para testar a fé e convicção de quem ordena. Nessa hora, não se pode vacilar. O jovem, após ser liberto, fica inerte, como se estivesse morto. Fazia tempo que o seu espírito não dirigia o próprio corpo. Mas Jesus o tomou pela mão e ele se levantou e reassumiu o controle de sua própria vida. Assim restaurado, Jesus o entregou ao seu pai. O milagre estava feito. A fé do pai foi contemplada e recompensada. A multidão teve mais uma prova da divindade de Jesus.

7ª) Uma grande questão
     Como prevalecer sobre Satanás?

28  Quando entrou em casa, os seus discípulos lhe perguntaram em particular: Por que não pudemos nós expulsá-lo? (Mc 9)
29  Respondeu-lhes: Esta casta não pode sair senão por meio de oração e jejum. (Mc 9)
19  Então, os discípulos, aproximando-se de Jesus, perguntaram em particular: Por que motivo não pudemos nós expulsá-lo? (Mt 17)
20  E ele lhes respondeu: Por causa da pequenez da vossa fé. Pois em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará. Nada vos será impossível. (Mt 17)
21  Mas esta casta não se expele senão por meio de oração e jejum. (Mt 17)

A prioridade máxima deve ser resolver o problema; as dúvidas ficam para depois. É na intimidade da vida privada que se tratam determinadas questões. Os discípulos estavam confusos e inseguros. Quem não estaria? Ao chegarem em casa perguntaram ao Mestre: por que não conseguimos? O que faltou? A resposta de Jesus registrada por Marcos parece contradizer a revelada por Mateus. Marcos coloca a questão em termos de uma casta ou categoria de demônios mais difícil de ser exorcizada, o que requereria maior preparação espiritual (oração e jejum) para lidar com ela. Mateus diz que a causa foi “pouca fé”. Na verdade, as duas coisas são complementares e essenciais: preparação ou consagração, e fé. 

Uma outra razão de não terem conseguido é que aquele momento estava reservado para que se manifestasse a glória de Deus, em Jesus.

Conclusão

A narrativa da cura do jovem possesso revela que, diante das grandes lutas espirituais e humanas, apenas a presença e a ação de Jesus trazem solução plena. O episódio expõe a limitação dos discípulos, a angústia de um pai, o poder opressor do mal e, sobretudo, a necessidade de fé genuína, oração e dependência profunda de Deus. Ao final, fica claro que nenhuma força pode resistir à autoridade de Cristo, e que a vitória espiritual nasce da comunhão com ele e da confiança rendida no seu poder.

Que Deus nos ajude!


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A travessia da fé

Marcos 4.35-41; Mateus 8.18, 23-27; Lucas 8.22-25

Introdução

No findar de mais um dia de ensinamentos e doutrinamentos, Jesus se dirige aos que estavam com ele, num tom de comando, e diz: “- Passemos para a outra margem”. Na verdade, há nessas palavras do Mestre muito mais que a intenção de empreender uma viagem marítima. Observando atentamente os acontecimentos anteriores e posteriores, podemos perceber que Jesus intencionava conduzir os discípulos da margem teórica para a margem prática; da margem do conhecimento, das doutrinas, dos princípios, enfim, das palavras, para a margem da ação, da vivência, da experiência prática e real.

1. A MARGEM DE CÁ

“Tempo de arrependimento, confissão e aprendizado (discipulado)”

35 Naquele dia, sendo já tarde, disse-lhes Jesus: Passemos para a outra margem.(Mc 4)
18 Vendo Jesus muita gente ao seu redor, ordenou que passassem para a outra margem.(Mt 8)
22 Aconteceu que, num daqueles dias, entrou ele num barco em companhia dos seus discípulos e disse-lhes: Passemos para a outra margem do lago; …(Lc 8)

Jesus estava apenas no início do seu ministério. Entretanto, já conseguia reunir em torno de si uma numerosa multidão. Desta feita, ele fez de um barco à beira-mar (mar ou lago da Galileia) o seu púlpito e ensinava muitas coisas, por parábolas, àquela congregação à sua frente, na praia (Mc 4.1-2). Quem era este que tinha tanto a ensinar e tantos para lhe ouvir?

A característica mais marcante da margem de cá está expressa pelo evangelista em Marcos 4.2, 33-34. Esta margem se refere ao mundo das palavras, que expressam ideias, formam convicções e determinam comportamentos. Emerson se expressou assim: “Semeai um pensamento e colhereis um ato; Semeai um ato e colhereis um hábito; Semeai um hábito e colhereis um caráter; Semeai um caráter e colhereis um destino”.

A missão de Jesus incluía uma ampla exposição a respeito de coisas que o ser humano precisava saber. Coisas que Deus já havia revelado parcialmente “aos pais pelos profetas”, mas que agora falava diretamente pelo Filho (Hb 1.1-2). As palavras de Jesus revelavam, basicamente: Os mistérios, os princípios do reino de Deus, que estava sendo estabelecido entre os homens; os padrões de conduta requeridos por Deus e os acontecimentos futuros que afetariam a vida de cada criatura humana. Enfim, todo o conhecimento necessário ao homem, no qual ele pudesse alicerçar a sua vida, por nele a sua fé e viver em harmonia com o resto da criação e com o Criador.

Três grupos de pessoas:

Jesus tinha diante de si uma multidão, composta por grupos que, de certa forma, ainda nos cercam hoje. Do ponto de vista intelectual e de personalidade, podemos identificar três grupos principais – enfatizando tanto os aspectos materiais quanto os espirituais:

– Personalidade Massificada:

Formado por indivíduos que absorvem ideias dispersas e experiências cotidianas, esse grupo, também denominado “massa atrasada”, é o maior em qualquer época. Assim somos alertados em Romanos 14.5b: “Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente.”

– Personalidade Induzida:

Caracterizado por pessoas influenciadas por líderes ou ideologias de determinados segmentos – sejam entidades de classe, sindicatos, partidos políticos, religiões ou seitas – esse grupo se forma a partir da adoção de princípios e crenças alheias. É preciso ter cautela, conforme Colossenses 2.4: “Assim digo para que ninguém vos engane com raciocínios falazes.”

– Personalidade Lapidada:

Formado por indivíduos que constroem sua visão de mundo com base em ideias e fatos investigados, estudados e comprovados, esse grupo se destaca pelo discernimento. Em 1Tessalonicenses 5.21, somos exortados: “… julgai todas as coisas, retende o que é bom.”

Sejamos cristãos ou não, e independentemente do campo – religioso ou secular – cada um de nós pode ser enquadrado em um desses grupos. Em qual deles estamos? Ter consciência dessa realidade é fundamental para que possamos tomar decisões significativas em nossas vidas.

No universo das palavras, o Evangelho se destaca como o único capaz de salvar e aperfeiçoar o homem, conforme enfatizado em Colossenses 1.26-28.

2. A TRAVESSIA

“Tempo de experiência pessoal com Deus”

A vida não é feita só de palavras e pensamentos! Quantos ficariam assentados, indefinidamente, ouvindo palavras de sabedoria. A rainha de Sabá não mediu esforços para estar diante de Salomão e ouvir de viva voz palavras de extrema sabedoria. Não há limites para se registrar palavras e ideias, entretanto, se essas palavras não forem capazes de melhorar a situação do homem, então serão apenas palavras vazias, para o engano da alma e do intelecto.

Após um dia repleto das sábias e inspiradoras palavras de Jesus, era chegada a hora de vê-las ganhar forma e transformar-se em vida. Era tempo de sair da zona de conforto e vivenciar a fé. Em outra ocasião, mais adiante, no monte da transfiguração, Pedro sugeriu ficarem ali, “com a cabeça nas nuvens”, desfrutando daquele momento glorioso (Mc 9.5), porém havia uma missão a cumprir, muita gente a ser alcançada, libertada e curada, como o jovem possesso, no pé do monte (Mc 9.14-29).

A travessia é:

  • Uma Ordem Divina – “Passemos…”
  • Obrigatória para se alcançar a outra margem, isto é, algo mais.
  • Dinâmica como o deslizar do barco sobre as águas.

No campo da fé, ela retrata a experiência pessoal, através da qual a Palavra de Deus passa a ter um significado real em nossa vida. É quando as promessas divinas deixam de ser apenas palavras e passam a ser realidade.

a) O início da travessia

36 E eles, despedindo a multidão, o levaram assim como estava, no barco; e outros barcos o seguiam.(Mc 4)
23 Então, entrando ele no barco, seus discípulos o seguiram. (Mt 8)
22 ….; e partiram.(Lc 8)

Este é o cenário do início da travessia. A multidão permanece na praia enquanto o barco de Jesus assume a dianteira, seguido por outras embarcações. Elementos simples – barco, mar, viagem – simbolizam a essência da vida. Podemos imaginar que somos como um barco navegando pelo vasto mar do mundo: uma imensidão repleta de recursos e belezas, mas também sujeita a surpresas desagradáveis.

Quatro tipos de atitudes para com Jesus:

O quadro do início da travessia nos sugere ou remete a algumas atitudes que em todas as épocas as pessoas têm tido para com Jesus:

1º) Os Indiferentes
Há uma grande multidão que nem sequer está interessada em saber quem é Jesus e ouvir o que ele tem a dizer. São pessoas muito ocupadas e entretidas trilhando o caminho largo.

2º) Os Oportunistas
Há uma pequena multidão que até gosta de ouvir sobre Jesus, mas fica na praia e, logo após, retorna a seus velhos hábitos.

3º) Os Simpatizantes
Há também aqueles, que se dizem interessados, ou até mesmo cristãos, mas seguem Jesus de longe, sem assumir compromisso.

4º) Os Autênticos
O menor e mais privilegiado grupo é formado por aqueles que têm Jesus no barco da sua vida, isto é, que desfrutam da sua intimidade e comunhão.

Esses grupos sempre existirão. Em qual deles você está?

b) O meio da travessia

O quadro do meio da travessia se mostra ameaçador, tenebroso, como na provação. Por cima, a negridão da noite; por baixo, o mar revolto; em volta, ao redor, a tempestade de vento levantando fortes ondas que se arremessavam contra o barco. Que situação terrível! É na provação que chegamos mais perto de Deus. Ela nos proporciona a oportunidade de conhecer melhor a Deus e a nós mesmos. Os momentos de crise têm mudado a vida de muitos, levando-os a uma vida de inteiro compromisso e dependência de Deus (Jó 42.5). Por que? Porque a Palavra de Deus se reveste de vida. A presença de Deus se torna real.

Quatro fases da crise:

1º) Crise e Autossuficiência

37 Ora, levantou-se grande temporal de vento, e as ondas se arremessavam contra o barco, de modo que o mesmo já estava a encher-se de água. (Mc 4)
24 E eis que sobreveio no mar uma grande tempestade, de sorte que o barco era varrido pelas ondas. Entretanto, Jesus dormia. (Mt 8)
23 Enquanto navegavam, ele adormeceu. E sobreveio uma tempestade de vento no lago, correndo eles o perigo de soçobrar. (Lc 8)

É interessante observar como as coisas acontecem. Aquele tipo de tempestade de vento era muito comum no Mar da Galileia. O levantamento do ar quente do dia permitia ao ar mais frio das colinas ao redor, descer rapidamente sobre o lago, girando e rodopiando. Aqueles homens, como bons conhecedores do mar, certamente sabiam disso. Entretanto, confiados na habilidade que tinham, parece que inicialmente dispensaram a presença de Jesus, talvez até mesmo com a nobre intenção de deixá-lo descansar. Jesus ficou atrás, na popa, e dormia. Na nossa vida não é muito diferente. Nos julgamos capazes de lidar com os desafios sozinhos, com os nossos próprios recursos, com as nossas habilidades, talvez, até com as palavras de Jesus na mente, mas quanto a Jesus, ele fica “dormindo”, atrás.

2º) Crise e Clamor

38 E Jesus estava na popa, dormindo sobre o travesseiro; eles o despertaram e lhe disseram: Mestre, não te importa que pereçamos? (Mc 4)
25 Mas os discípulos vieram acordá-lo, clamando: Senhor, salva-nos! Perecemos! (Mt 8)
24 Chegando-se a ele, despertaram-no dizendo: Mestre, Mestre, estamos perecendo!… (Lc 8)

Quando o barco começa a encher-se de água, porque o “barco” do cristão não está isento das tempestades desta vida; quando nos tornamos completamente impotentes para dominar a situação, só então nos lembramos de recorrer a Jesus. Como Deus tem sido misericordioso! Jesus nunca rejeita um coração quebrantado e aflito. Ele se mantém fiel e pronto a ajudar, apesar de tudo.

3º) Crise e Solução

39 E ele, despertando, repreendeu o vento e disse ao mar: Acalma-te, emudece! O vento se aquietou, e fez-se grande bonança. (Mc 4)
40 Então, lhes disse: Por que sois assim tímidos?! Como é que não tendes fé? (Mc 4)
26 Perguntou-lhes, então, Jesus: Por que sois tímidos, homens de pequena fé? E, levantando-se, repreendeu os ventos e o mar; e fez-se grande bonança. (Mt 8)
24 ….Despertando-se Jesus, repreendeu o vento e a fúria da água. Tudo cessou, e veio a bonança. (Lc 8)
25 Então, lhes disse: Onde está a vossa fé? ….. (Lc 8)

Diante dos clamores daqueles homens, Jesus acorda (a autenticidade da sua humanidade) e repreende o vento e aquieta o mar (a autenticidade da sua divindade). Felizes são aqueles que podem contar com Jesus, por perto, pois ele pode salvar a alma das tempestades repentinas da vida e da destruição final!

Após o majestoso milagre, Jesus se dirige àqueles homens questionando-lhes a falta de fé. Por que? “O apelo que lhe fizeram, estando ele dormindo, não foi a calma da invocação de um poder em que se confia, mas a reprimenda assustada daqueles cuja fé foi derrotada pelo perigo”. Deus espera muito mais de nós em termos de fé!

4º) Crise e Crescimento

41 E eles, possuídos de grande temor, diziam uns aos outros: Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem? (Mc 4)
27 E maravilharam-se os homens, dizendo: Quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem? (Mt 8)
25 …. Eles, possuídos de temor e admiração, diziam uns aos outros: Quem é este que até aos ventos e às ondas repreende, e lhe obedecem? (Lc 8)

O descobrimento da grandeza daquele Jesus que estava ao lado deles era tal que as suas mentes ficaram confusas e atemorizadas com o que seus olhos presenciaram. O reconhecimento da grandeza deste Deus vivo e verdadeiro, através de uma experiência pessoal é indispensável para alcançarmos a outra margem da vida cristã.

3. A MARGEM DE LÁ

“Tempo de vida frutífera”

É o lugar de ação, do serviço cristão. É o lugar onde se encontram as multidões famintas e necessitadas. Quando Jesus desembarcou na outra margem (Mc 5.1), ele enfrentou e venceu os maiores desafios que conhecemos: O poder satânico (Mc 5.1-20), a enfermidade incurável (Mc 5.25-34) e a morte (Mc 5.21-24; 35-43). Provou assim toda a sua autoridade.

Jesus, porém, não reservou para si próprio a tarefa de libertar, curar e pregar; antes, capacitou e continua capacitando aqueles seus servos que se dispõem a pagar o preço dessa viagem para a outra margem, dessa travessia da fé (Mc 6.7-13).

Conclusão

A margem de cá representa o tempo de forjar a fé, alicerçando-a solidamente na Bíblia, a Palavra de Deus. Na travessia do cotidiano, é o tempo de aprofundar a comunhão e a intimidade com o Senhor — tanto nos dias serenos quanto nos embates da vida. E, na margem de lá, salvos e capacitados por Deus, fortalecidos pelo Espírito Santo, é tempo de sermos instrumentos úteis: cumprindo nossa missão, servindo ao próximo, levando a mensagem da vida eterna e sendo apoio nas suas eventuais necessidades e desafios.

A poesia abaixo resume os três tópicos:

A Travessia da Fé

Na margem de cá,
Onde a calmaria nos aquieta
o coração se abre à brisa suave
de lições sagradas e promessas contidas.
Ali, em cada palavra e olhar,
descobrimos os ensinamentos
que, como sementes, aguardam o tempo
de germinar na alma.

Então, surge a travessia,
o mar se agita, tempestade e desafio,
e o barco balança a fé.
A experiência prática pulsa,
no uivar do vento e no agito da dúvida,
mas então, a voz de Jesus
acalma as ondas,
e a travessia se torna
um caminho de confiança renovada,
onde cada gota de medo
se transforma em confiança no Salvador.

E chegamos à margem de lá,
a luz se ergue em frutos de serviço,
Ali, a fé amadurece e é comprovada.
O que foi aprendido e vivido se traduz em ação:
em cada gesto de amor,
em cada palavra de esperança,
floresce o fruto da graça
que transforma o mundo ao nosso redor.

………………………..

Entre a margem de cá, a travessia e a margem de lá, a travessia se revela como um caminho de transformação e ação:
Na calmaria, aprendemos;
na tormenta, experimentamos;
e, no amanhecer, servimos …
com a grandiosidade do Deus que acalma todas as tempestades.

A sociedade clama por socorro. Temos ouvido a sua voz?

Você que ainda não tem Jesus no “barco”, como vai reagir a tudo que tem ouvido?


A Cura de um cego em Betsaida (Mc 8.22-26)

Introdução

Não há de passar despercebido ao leitor mais atento, a grande incidência de pessoas cegas no tempo de Jesus, registrada nos Evangelhos. As palavras “cego” ou “cegos” ocorrem 49 vezes nos Evangelhos. Assim como a lepra (também com alta incidência naquele tempo) foi usada para tipificar o pecado, a cegueira foi usada por Jesus, em muitas ocasiões, para tipificar a cegueira espiritual de Israel, principalmente dos seus líderes religiosos.

Na sinagoga de Nazaré Jesus leu no livro do profeta Isaías um texto contendo “….e restauração da vista aos cegos,…” (Lc 4.18) e afirmou que essa Escritura estava se cumprindo (Lc 4.21). E, ainda como prova a João Batista, de que ele era o Messias, mandou dizer-lhe: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho.” (Mt 11.5). Alguns viram nesse milagre inédito na história, de restauração da vista aos cegos, uma evidência da messianidade de Jesus (Jo 9.32; 10.21; 11.37).

Por conta desse contexto social, algumas expressões foram bastante usadas: “… Pode, porventura, um cego guiar a outro cego?…” (Lc 6.39); “Deixai-os; são cegos, guias de cegos.” (Mt 15.14a); “Ai de vós, guias cegos, que dizeis:…” (Mt 23.16), este último condenando a hipocrisia e a cegueira espiritual dos escribas e fariseus (Mt 23.1-39). Apesar dos muitos sinais e milagres realizados por Jesus, muitos não creram, para que se cumprisse a profecia de Isaías: “Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim curados.” (Jo 12.40).

Havia muitos cegos aguardando a cura (Jo 5.3). Também há, nos Evangelhos, o registro genérico da cura de muitos cegos (Mt 11.5; Lc 7.22; Mt 15.30-31; Mt 21.14), além de outros enfermos. Entretanto, podemos destacar o registro de cinco curas específicas; curiosamente todos do sexo masculino:

1º) O endemoniado cego e mudo (Mt 12.22-37).
2º) Dois cegos (Mt 9.27-31).
3º) O cego de Betsaida (Mc 8.22-26).
4º) O cego de nascença (Jo 9.1-41).
5º) O cego Bartimeu (Mc 10.46-52; Mt 20.29-34; Lc 18.35-43).

Por que havia tantos cegos no tempo de Jesus?

A grande incidência de cegueira pode ser atribuída a uma combinação de fatores ambientais, sociais e médicos, tais como:

  • Doenças como o tracoma, uma infecção bacteriana do olho, eram comuns na antiguidade. O tracoma e outras infecções oculares que afetam os olhos também contribuíam para a perda de visão, se não fossem tratadas adequadamente.
  • A falta de condições adequadas de higiene e saneamento, água contaminada,  contribuíam para a disseminação de doenças infecciosas que podiam afetar os olhos.
  • A deficiência de nutrientes essenciais, como a vitamina A, é conhecida por causar cegueira. A dieta da época podia ser inadequada em termos de nutrição, especialmente para as classes mais pobres.
  • A medicina naquela época não tinha o avanço necessário para tratar muitas das condições que causavam cegueira. Não havia antibióticos para tratar infecções bacterianas ou conhecimento suficiente sobre a prevenção de doenças oculares. A pobreza limitava o acesso das pessoas a cuidados médicos básicos, tornando-as mais vulneráveis a condições que poderiam levar à cegueira.
  • Lesões nos olhos resultantes de acidentes de trabalho, especialmente em ocupações perigosas, também poderiam levar à cegueira. Sem tratamento adequado, essas lesões muitas vezes resultavam em perda permanente da visão.

A presença de muitos cegos nas narrativas bíblicas reflete essa realidade histórica e, também, enfatiza o papel de Jesus, propiciando a cura física e espiritual às pessoas marginalizadas da sociedade. Vejamos, então, alguns aspectos dessa cura:

1) Conduzido a Jesus

Os Evangelhos começam narrando os trinta anos preparatórios e, na sequência, o ministério público de Jesus, começando na Judeia. Depois, com a prisão de João Batista, Jesus se desloca para um ministério na Galileia, durante o qual acontece a execução de João Batista, pelo rei Herodes (Mt 14.1-12).  Nesse tempo a fama de Jesus já havia se espalhado por toda a parte, a inveja e ameaça dos religiosos da época aumentava. Inicia-se, assim, o período das retiradas de Jesus, um tempo de instrução especial aos doze. Ali, bem ao norte, atravessando o mar da Galileia, ele chegou à cidade de Betsaida.

Como já se tornara costume acontecer, levaram um cego à presença de Jesus e, é interessante observar que rogaram-lhe que o “tocasse”, naturalmente com o sentido de “curasse”.

“E todos da multidão procuravam tocá-lo, porque dele saía poder; e curava todos.” (Lc 6.19)

Há vários textos que explicitam essa vontade e crença do povo de tocar em Jesus, ou nas suas vestes, para ser curado (Mc 3.10; Lc 6.19; Mc 6.56; Mt 14.36). Um dos casos mais emblemáticos é o da mulher que sofria de uma hemorragia havia 12 anos (Mc 5.25-34; Mt 9.20-22; Lc 8.43-48).

Eles também rogavam-lhe que Jesus impusesse as mãos sobre enfermos, “Então, lhe trouxeram um surdo e gago e lhe suplicaram que impusesse as mãos sobre ele.” (Mc 7.32), ou que as tocasse com vistas a cura (Mc 8.22).

2) Conduzido por Jesus

a) O deslocamento

O primeiro aspecto que chama a atenção neste texto é o fato de Jesus conduzir este cego para fora da aldeia. Foi a primeira vez que ele fez isso? Por que teria feito isso? Antes de tudo, é sempre bom lembrar do risco que se corre ao tentar interpretar o que Jesus, um ser divino, estava pensando ou qual era o seu propósito ao realizar certas ações, quando ele mesmo não nos revela isso no texto bíblico. O que nos cabe fazer é sugerir uma interpretação, com o devido embasamento. Então, podemos mencionar os seguintes motivos:

1º) Incialmente, é preciso esclarecer que em outras ocasiões Jesus também levou pessoas para um tratamento à parte (Mc 7.33; 5.40).

2º) Jesus parece querer dar um tratamento diferenciado a esse homem. Ele é retirado do meio da multidão, para ser tratado à parte, para propiciar um ambiente mais privado e pessoal. Isso permitiria ao homem concentrar-se exclusivamente em Jesus, sem as distrações ou pressões da multidão.

3º) Jesus não quis que a multidão acompanhasse essa cura. Afinal, não era sua intenção dar espetáculo para eles; provocar sensacionalismo. Ele não desejava ser seguido apenas por causa de suas obras milagrosas. Ele queria que as pessoas o seguissem pela fé e compreensão de sua mensagem, não apenas pelos sinais e maravilhas. Além disso, o que ele fazia, fazia por misericórdia e não para obter popularidade ou fama.

4º) Betsaida significa “casa de pesca”. Alguns estudiosos sugerem que Betsaida era uma cidade que tinha rejeitado as obras de Jesus (cf. Mateus 11.21). Assim, tirar o homem cego da aldeia pode ter sido um ato simbólico de separação do ambiente de incredulidade.

b) O método

O poder de Jesus  não sofre influência ou limitações de método. Na sua soberania, ele usa o método que quer, pois este é apenas um detalhe. Basta uma palavra sua, de perto (Mc 9.25) ou à distância (Mc 7.29-3). Às vezes o milagre acontecia com a imposição de mãos (Lc 4.40; 13.13). Em certa ocasião ele tomou a sogra de Pedro, pela mão, e a febre a deixou (Mt 8.15); em outra, ele tomou a filha de Jairo, pela mão, ordenou, e ela se levantou da morte (Mc 5.41).

Havia algo de muito especial no toque de Jesus e ele tinha uma preferência em fazê-lo. Ele tocou o leproso, o que ninguém fazia, e a sua saúde foi transferida para o enfermo, e não o contrário (Mc 1.41-42).

Há três relatos nos Evangelhos nos quais Jesus não apenas tocou o enfermo ou deficiente, mas tocou-lhe a parte do corpo afetada e usou saliva: (i) no surdo-mudo, pôs os dedos nos ouvidos e tocou-lhe a língua com saliva; (ii) no cego de nascença, aplicou-lhe um lodo de saliva e terra nos olhos e o enviou a se lavar no tanque de Siloé (Jo 9.6); e, aqui, (iii) no cego de Betsaida, aplicou-lhe saliva nos olhos (Mc 8.23).

Nos 5 casos de cegos curados, mencionados anteriormente, o resumo dos métodos é:

CASOREF BÍBLICAMÉTODO
O endemoniado cego e mudoMt 12.22-37Não mencionado
Dois cegosMt 9.27-31Tocou-lhes os olhos
O cego de BetsaidaMc 8.22-26Aplicou saliva nos olhos e impôs as mãos
O cego de nascençaJo 9.1-41Cuspiu na terra, fez lodo e aplicou nos olhos
O cego BartimeuMc 10.46-52; Mt 20.29-34; Lc 18.35-43Tocou-lhe os olhos

c) Cura progressiva?

Conforme já exposto, esta cura tem muito em comum quando comparada a outras. Entretanto, há aqui alguns aspectos incomuns, ou, até mesmo inéditos ou exclusivos. Por exemplo, Jesus “avaliar a eficácia da cura” perguntando ao curado: “Vês alguma coisa?”. Nos cinco casos de cura de cegueira já citados, somente neste temos esse tipo de registro. A outra peculiaridade e ineditismo desta cura reside no fato dela ter ocorrido em duas etapas. Nas outras quatro, os curados recuperaram a visão imediatamente! Diante dessa excepcionalidade os estudiosos e comentaristas bíblicos se sentem desafiados a buscar explicações. Então, apresentamos aqui algumas dessas tentativas, bem como, algumas considerações:

1ª) Diante da realidade de quem era Jesus, o Filho de Deus, do seu inigualável poder e de todos os sinais, milagres e prodígios que realizou, não há que pensar ou supor que “faltou-lhe poder para realizar a cura total, de uma só vez”.

2ª) Pela sua resposta, percebe-se que o homem, anteriormente cego, havia recuperado a visão, porém, não com total nitidez, pois ele via os homens como árvores, andando. Então, isso acarretou uma segunda intervenção de Jesus, através do toque das suas mãos nos olhos dele, completando a cura. Assim sendo, estamos diante de uma cura em duas etapas. Este milagre é o único relato de uma cura progressiva nos Evangelhos. Por que? Qualquer tentativa de explicação, como as apresentadas abaixo, pode não passar de mera suposição ou especulação.

a) É fato notório que, diante do enfermo/deficiente, ou daquele que rogava por este, em inúmeros casos, podemos perceber que Jesus tinha certa praxe quando interagia com eles: “– O que queres que eu faça?”; “– Credes que eu possa fazer isso?”; “– Seja feito segundo a vossa fé.”; “– Vai, a tua fé te salvou.” Isso deixa claro que Jesus estava interessado em algo mais do que a cura física, isto é, a cura espiritual.

b) É importante ressaltar que a cura operada por Jesus é verdadeiramente um milagre extraordinário. Conhecemos relatos de pessoas que, por exemplo, operaram o joelho ou a perna, ficaram um tempo com a perna imobilizada, depois precisaram de vários meses de fisioterapia intensa para voltar a caminhar normalmente. Então, imaginem um coxo de nascença ser curado e imediatamente começar a caminhar (At 3.8), ou um cego voltar a enxergar, em plena luz do dia, sem qualquer período de adaptação?

c) Não se pode atribuir o poder da cura à fé da pessoa, pois o poder estava em Jesus. De qualquer forma, não se sabe se Jesus estava provando a fé daquele homem, vinculando a fé dele à sua cura. Sua fé talvez fosse parcial, gerando uma cura parcial. Então, quando algo de extraordinário começou a acontecer com a sua visão, sua fé desabrochou e Jesus completou a cura. Isso pode ilustrar que a cura física e espiritual nem sempre é instantânea e pode ocorrer em etapas.

d) Alguns interpretam essa visão parcial como uma metáfora para a visão espiritual. Antes de serem plenamente iluminados pela fé, as pessoas podem ver “sombras” da verdade. A completa clareza vem com um entendimento e revelação mais profundos.

e) Há ainda quem diga que Jesus agiu desta forma, realizando um milagre inicialmente menos impressionante, com o fim de conter sua fama e evitar mais perseguição. Outros sugerem que essa narrativa se torna ainda mais impressionante, conferindo mais autenticidade ao registro bíblico.

Enfim, todas as hipóteses sugeridas acima podem não passar de mera elucubração ou especulação. A única certeza que temos é que Jesus não fracassou, por ter que repetir ou completar o milagre. Ele tinha um propósito e, certamente, o realizou! Quanto a nós, não é razoável ficar gastando tempo com aquilo que não nos foi claramente revelado.

3) Conduzido para uma nova vida

Após o milagre, Jesus o orientou a não entrar na aldeia, para não propagandear o milagre que recebera. Isso também aconteceu após outras curas e podemos deduzir que havia nisso a intenção de contenção da sua fama e popularidade e, por outro lado, a bênção era para aquele homem e a lição maior, para os seus discípulos.

Quando uma pessoa tem um encontro com Jesus, nunca volta pelo mesmo caminho. A ida dele para casa nos remete à ideia de que é ali o seu primeiro campo missionário; seu lugar de viver e testemunhar o que Deus fez em sua vida.

Além disso, este seu encontro com Cristo proporcionou-lhe uma restauração de vida, o resgate da sua dignidade, uma nova vida. Na sociedade da época de Jesus, a cegueira era vista de várias maneiras:

– Acreditava-se que a cegueira era consequência do pecado (Jo 9.2). Esse pensamento causava uma exclusão da graça e da misericórdia de Deus, bem como excluía o cego do convívio das pessoas.

– Os cegos eram muitas vezes marginalizados pela sociedade. Eles não eram apenas ignorados, mas também eram frequentemente esquecidos nos grandes eventos e celebrações.

– Na Judéia antiga, dos tempos de Jesus Cristo, o destino das pessoas que tinham qualquer deficiência era esmolar para conseguir sobreviver. Os cegos, os amputados, os paralíticos pelas mais variadas causas, acabavam expostos pelos caminhos, ruas, logradouros e praças públicas.

– Havia restrições religiosas, isto é, de acordo com a Lei, um cego ou alguém com defeito físico, não poderia servir a Deus no ministério sacerdotal (Lv 21.16-24).

Conclusão

O milagre do cego em Betsaida é rico em simbolismos e ensinos espirituais. Jesus levar o homem para fora da aldeia sublinha a necessidade de separação de um ambiente de descrença e de criar uma conexão pessoal e íntima com aqueles a quem ele cura. A visão parcial do homem pode ilustrar tanto a progressão da cura física quanto o crescimento gradual da compreensão espiritual.

“Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais” (Mc 8.18)

Há algumas lições espirituais que podemos extrair desta cura em Marcos 8.22-26 e seu contexto. Tudo começa quando Jesus embarca rumo a Betsaida, iniciando a terceira retirada (Mc 8.13). Então, não é difícil perceber quatro cenas de falta de visão ou falta de discernimento:

1ª) Falta de visão espiritual dos discípulos (Mc 8.13-21).

Os discípulos confundiram o “fermento dos fariseus e de Herodes”, com o fermento de pão. Eles não discerniram que Jesus falava da hipocrisia dos fariseus e do secularismo e mundanismo de Herodes.

2ª) Falta de visão física e espiritual do cego de Betsaida (Mc 8.22-26).

O cego nada enxergava. Depois do primeiro toque de Jesus, ele começou a ver alguma coisa, mas ainda não conseguia distinguir pessoas, de árvores. Depois do segundo toque de Jesus, ele passou a ter uma visão totalmente restaurada. Da mesma forma, a visão espiritual é progressiva.

3ª) Falta de visão espiritual do povo (Mc 8.27-30).

O povo não conseguia discernir que Jesus era o Messias, o Filho de Deus, e não mais um profeta. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam; não perceberam o tempo da sua visitação. Entretanto, tendo Pedro como porta voz, aqueles discípulos declararam que ele era o Cristo, o Messias prometido.

4º) Falta de visão espiritual de Pedro (Mc 8.31-33).

Por um momento faltou a Pedro a visão espiritual e discernimento da missão de Jesus, do Messias, da necessidade de seu sofrimento, morte e ressurreição.

Enfim, todos eles e todos nós precisamos da iluminação de Deus para enxergar além da visão física; de uma correta e progressiva visão espiritual que nos permita discernir as coisas espirituais, a vontade divina.

Bibliografia
1. Bíblia Sagrada (SBB – Almeida Revista e Atualizada – ARA).
2. Bíblia Online – SBB.
3. Watson, S. L. e Allen, W. E. – Harmonia dos Evangelhos.
4. R. N. Champlin, Ph. D. – O Novo Testamento Interpretado – Versículo por versículo – MILENIUM Distribuidora Cultural Ltda.
5. Internet / ChatGPT.

A cura do cego de nascença

A CURA DO CEGO DE NASCENÇA (Jo 9. 1-41)
Uma ilustração da redenção do homem e suas consequências.

Introdução

Ainda na festa dos tabernáculos, num contexto de muitas discussões sobre a autenticidade messiânica de Jesus, João apresenta uma narrativa extensa sobre um grande milagre operado por Jesus dando visão a um cego de nascença, o único caso, entre os  sete casos registrados pelos evangelhos (Mt 9.27 [2]; Mc 8.22; Mt 12.22; 20.30 [2] e Jo 9.1).  O milagre em si e a narrativa cumpriram o importante papel de testificar que Jesus era verdadeiramente o Messias, porquanto, homem algum, nem mesmo possuído por Satanás, havia curado um cego de nascença.

Há muito mais neste texto do que uma cura de Jesus. Jesus ilustra a sua missão como “Luz do Mundo” (Jo 9.5), concedendo a visão física, a um cego de nascença e, em seguida, completa a obra, concedendo a visão espiritual. A riqueza de detalhes encontrados nesta história nos conduz aos elementos característicos da operação divina no homem, uma ilustração da redenção do homem e suas consequências. A redenção….

a) É resultado da iniciativa de Deus (v.1a)

1a  Caminhando Jesus, viu….

O olhar de Jesus é diferente: penetrante (vê o interior, pesa os sentimentos e  amarguras da alma) e ativo (contempla, se  compadece, se aproxima e auxilia).

Deus também viu que não havia um mediador humano, alguém com as qualificações necessárias para a tão elevada missão de salvação, então, ele próprio a providenciou enviando o seu Filho, Jesus Cristo, como mediador e salvador, no seu primeiro advento: “Viu que não havia ajudador algum e maravilhou-se de que não houvesse um intercessor; pelo que o seu próprio braço lhe trouxe a salvação, e a sua própria justiça o susteve.” (Is 59.16). O mesmo profeta Isaías complementa: “O SENHOR desnudou o seu santo braço à vista de todas as nações; e todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus.” (Is 52.10). Foi essa  visão divina que trouxe Jesus ao mundo (Sl  14.2-3; Gl 4.4; Hb 1.1-3).

b) É focalizada na necessidade humana (v.1b)

1b ….um homem cego de nascença.

A necessidade humana é aqui contemplada por Jesus; e, pela trindade santa, desde sempre. Já nascemos em pecado, portanto, somos pecadores de nascença, conforme confessou o rei Davi: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe.” (Sl 51.5). E, o apóstolo Paulo conclui: “como está escrito: Não há justo, nem um sequer,  não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus,  sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus,” (Rm 3.10-12, 23-24). É assim que todos somos encontrados e contemplados pela visão divina desde o nosso nascimento. Não é correto pensar e acreditar que a natureza humana é essencialmente boa. Claro que não é! Isso é discurso mentiroso de uma religião falsa que quer agradar as pessoas e cooptar adeptos.

c) É de acordo com a vontade de Deus (vv. 2-3)

2  E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?

Havia falsas crenças entre os judeus de que a doença e o sofrimento eram resultado de uma punição pelo pecado praticado pela pessoa em alguma outra existência passada ou resultado do pecado praticado pelos pais. A primeira tem a ver com a doutrina da reencarnação e a segunda com a chamada maldição hereditária (ver Ex 20.5; 34.7; Nm 14.18; Dt 5.9; Ez 18.2).

3  Respondeu Jesus: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus.

Jesus, em sua resposta, descarta as duas supostas alternativas determinantes do sofrimento humano. Deus está no controle e pode transformar em bem aquilo que parece mal e cruel aos olhos humanos. Deus tinha um propósito na vida daquele cego e com aquele milagre de cura.

d) É para ser agenciada em caráter de urgência (vv. 4-5)

4  É necessário que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar.
5  Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.

Jesus mesmo se declara a “luz do mundo”, pois veio ao mundo para abrir os olhos aos espiritualmente cegos: “Prosseguiu Jesus: Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem se tornem cegos.” (Jo 9.39). Ele tinha pressa em realizar sua missão pois tinha consciência da exiguidade do seu tempo entre nós e da urgência em viabilizar a salvação de todo aquele que crê.

e) É através de Jesus (v. 6)

6  Dito isso, cuspiu na terra e, tendo feito lodo com a saliva, aplicou-o aos olhos do cego,

O método divino aqui utilizado pode até causar estranheza ou repulsa em algumas pessoas. Quem sabe se alguns circunstantes, vendo aquele “ritual grotesco”, censuraram veladamente ou abertamente a Jesus, julgando que tal ato se revestia da intenção de impor humilhação ao pobre homem que nem sequer podia ver o que o Mestre fazia? Só a mente divina é capaz de entender a razão ou motivação de tal ritual de cura. Como a imaginação não tem limites e pode até ganhar asas e flutuar na vastidão do espaço das ideias, sem compromisso com a exata, mas nem sempre disponível, interpretação teológica,  arrisco compartilhar aqui a seguinte ideia. Jesus, o também Deus-Criador, temporariamente encarnado, reproduz diante de todos o ato criativo do gênesis, desta vez cuspindo e manuseando outra vez a terra, o barro, para aplicar e restaurar o órgão defeituoso daquele homem. No início Adão foi formado do barro, do pó da terra, mas teve o toque e o sopro de vida divinos! Da mesma forma este cego recebe o toque divino para que a luz divina adentre o seu ser.

Por falar em método estranho, o apóstolo Paulo também menciona, por diversas vezes, que a mensagem do Evangelho, a pregação da Cruz é loucura para os que se perdem, para aqueles que acham que têm boa visão, mas que permanecem cegos espiritualmente. “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação.” (1Co 1.21, ver 1Co 1.18-25; 2.14).

f) É recebida através da obediência do homem (v. 7)

7  dizendo-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que quer dizer Enviado). Ele foi, lavou-se e voltou vendo.

Antes de prosseguir é importante esclarecer que, segundo a hermenêutica bíblica, que é a ciência, a arte de interpretação das Sagradas Escrituras, as parábolas proferidas por Jesus são narrativas alegóricas destinadas a transmitir verdades e conceitos gerais importantes. Portanto, não tiveram o propósito de servir de fonte de doutrina da fé cristã para a igreja, nem tampouco os detalhes e pormenores das narrativas se prestam a isso. O que estamos fazendo aqui é, a partir da doutrina exposta nas Epístolas doutrinárias, identificando e destacando de forma reversa alguns aspectos da redenção humana.

Isso posto, que fique claro que a salvação é obra exclusiva de Deus; portanto, não depende das obras humanas: “que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos,” (2Tm 1.9). Deste versículo 7 podemos destacar dois aspectos importantes:

  • Submissão ao método divino.

Quem é o ser humano para questionar o método divino? Sendo Deus a parte ofendida só ele poderia estabelecer as regras e condições para que o homem voltasse a ter comunhão com ele. Estas regras e condições incluíam a necessidade de um mediador com as características de Jesus. Conforme já comentamos, isso é loucura para os que se perdem!

  • Recepção e Obediência à palavra de Jesus.

O homem cego nem sabia ao certo tudo o que estava acontecendo. Ele recebeu o toque de Jesus, ouviu a sua palavra, recebeu-a em sua mente e coração, creu nela e obedeceu. Jesus nos ensinou assim: “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida.” (Jo 5.24). E o apóstolo Paulo acrescenta: “E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo.” (Rm 10.17). Os ensinos de Jesus enfatizam a importância do arrependimento, do crer nele e na sua palavra, do recebe-lo e da obediência à vontade de Deus: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.” (Jo 1.12-13)

O lavar neste texto nos leva a pensar no lavar regenerador do Espírito Santo: “não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo,” (Tt 3.5); “Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus.” (1Co 6.11)

g) É transformadora (vv. 8-9)

8   Então, os vizinhos e os que dantes o conheciam de vista, como mendigo, perguntavam: Não é este o que estava assentado pedindo esmolas?
9  Uns diziam: É ele. Outros: Não, mas se parece com ele. Ele mesmo, porém, dizia: Sou eu.

Os vizinhos e conhecidos do homem outrora cego ficaram confusos. Se parecia com ele, mas estava diferente. Antes era visto como um mendigo desprezível, um pobre coitado, um ser socialmente excluído. Agora, parecia um novo homem. Ele, porém, assumia e declarava sua mesma identidade, mas uma nova condição.

Quando o Espírito Santo regenera uma pessoa acontece algo extraordinário. A transformação maior acontece no seu interior, mas o seu exterior também é positivamente afetado. Não significa que atingiu a perfeição e não pecará mais. Não significa que era pobre e agora ficará rico.

O fato é que a habitação e o fruto do Espírito fazem dessa pessoa alguém diferente, uma nova criatura em Cristo, com um novo propósito de vida, com uma nova conduta e forma de agir. Em alguns casos a transformação é imediata e radical; em outras é mais lenta e gradual. Porém, é mandatório existir essa transformação!

h) É espantosa à mente humana (os vizinhos – vv. 10-12)

10  Perguntaram-lhe, pois: Como te foram abertos os olhos?
11  Respondeu ele: O homem chamado Jesus fez lodo, untou-me os olhos e disse-me: Vai ao tanque de Siloé e lava-te. Então, fui, lavei-me e estou vendo.
12  Disseram-lhe, pois: Onde está ele? Respondeu: Não sei.

Certamente essa boa e perceptível transformação favorece o surgimento das primeiras oportunidades de testemunhar aquilo que Deus fez em nossa vida. Já vivi o suficiente para ver o antes e o depois de pessoas transformadas por Cristo. A diferença é verdadeiramente surpreendente. Já tomei conhecimento de casais que participaram do evento Encontro de Casais com Cristo e tiveram suas vidas transformados. Uma amiga perguntou à esposa de um desses casais: – O que aconteceu com o seu marido, ele está tão diferente, parece até outra pessoa. Ela respondeu: – Nós participamos de um Encontro de Casais com Cristo. A amiga desabafou: – Nossa, que bom! Eu quero isso para o meu marido também!

 O intrigante é ser questionado sobre o que realmente aconteceu e na resposta só se ater aos detalhes elementares e materiais. É compreensível, afinal, como explicar as operações sobrenaturais de Deus, no coração humano? Testemunhar com fidelidade o que aconteceu, sua experiência pessoal com Deus, vale mais do que muitas teorias e filosofias.

i) É agente de polêmica para a religião formal (os fariseus – vv. 13-17)

13  Levaram, pois, aos fariseus o que dantes fora cego.
14  E era sábado o dia em que Jesus fez o lodo e lhe abriu os olhos.
15  Então, os fariseus, por sua vez, lhe perguntaram como chegara a ver; ao que lhes respondeu: Aplicou lodo aos meus olhos, lavei-me e estou vendo.
16  Por isso, alguns dos fariseus diziam: Esse homem não é de Deus, porque não guarda o sábado. Diziam outros: Como pode um homem pecador fazer tamanhos sinais? E houve dissensão entre eles.
17  De novo, perguntaram ao cego: Que dizes tu a respeito dele, visto que te abriu os olhos? Que é profeta, respondeu ele.

Mais uma marca da regeneração é que a nova criatura em Cristo passa a ser observada e confrontada pelo sistema majoritário ou dominante, quer religioso, quer secular. Esse é o preço de viver e praticar a contracultura cristã num mundo que jaz no maligno. Os versículos em análise neste tópico comprovam isso. O farisaísmo legalista daquela época e de sempre está mais preocupado com uma suposta violação do descanso sabático do que com o bem praticado a um pobre homem. É claro que o objetivo final é desqualificar o enviado de Deus. Vale ressaltar a postura e reação do que fora cego. (i) Ele não se intimida mesmo estando sob muita pressão de pessoas influentes. (ii) Ele não vacila, mas mantém a resposta, a verdade dos fatos ocorridos. (iii) Ele ousa defender o seu benfeitor, refutando os poderosos acusadores de Jesus, com um argumento de peso, ao ponto de criar dissensão entre eles. (iv) Ele demonstra uma visão crescente a respeito da pessoa de Jesus – que é profeta – e ousa declarar isso num meio tão hostil.

j) É motivo de escândalo para aqueles que não querem perder o prestígio (os pais – vv. 18-23)

18  Não acreditaram os judeus que ele fora cego e que agora via, enquanto não lhe chamaram os pais
19  e os interrogaram: É este o vosso filho, de quem dizeis que nasceu cego? Como, pois, vê agora?
20  Então, os pais responderam: Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego;
21  mas não sabemos como vê agora; ou quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Perguntai a ele, idade tem; falará de si mesmo.
22  Isto disseram seus pais porque estavam com medo dos judeus; pois estes já haviam assentado que, se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga.
23  Por isso, é que disseram os pais: Ele idade tem, interrogai-o.

A reação dos incrédulos muitas vezes acaba cumprindo o papel de prestar um serviço valioso para atestar e ratificar a operação miraculosa de Deus. Essa rigorosa apuração dos fatos conduzida por aqueles religiosos ciumentos, interrogando os pais do curado, só contribuíram para a comprovação do fato. Chama a atenção aqui a flagrante diferença de postura por parte dos pais do homem curado: (i) Eles procuram manter uma postura de isenção e distanciamento do fato, mesmo percebendo a grande bênção recebida pelo filho – “não sabemos como vê agora”.  (ii) Preferem não expor qualquer simpatia por Cristo – “ou quem lhe abriu os olhos”. (iii) Transferem toda a responsabilidade pela explicação para o filho curado – “perguntai a ele”. (iv) O texto (versículo 22) deixa claro que eles agiram dominados pelo medo de serem expulsos da sinagoga, da sua religião formal.

Outra consequência da regeneração é a reação da família quando um dos seus membros acolhe a fé cristã. Essa reação pode se manifestar de várias formas: Às vezes pode ser positiva, entretanto, é mais comum ser de (i) desconfiança; (ii) indiferença; (iii) contrariedade e desagrado pelo rompimento com a religião tradicional da família; (iv) rejeição e expulsão de casa, como manifestação extremada de repulsa. Assim, o novo convertido precisa estar preparado para lidar com essas reações, mantendo-se firme no Senhor.

k) É um fato incontestável (vv. 24-34)

24  Então, chamaram, pela segunda vez, o homem que fora cego e lhe disseram: Dá glória a Deus; nós sabemos que esse homem é pecador.
25  Ele retrucou: Se é pecador, não sei; uma coisa sei: eu era cego e agora vejo.

O fato da cura é comprovado naquele em que se realizou a obra divina. O fato em si é mais relevante do que a sua explicação racional. Assim se dá com a regeneração espiritual e isso é um bom princípio para o evangelismo pessoal.

26  Perguntaram-lhe, pois: Que te fez ele? como te abriu os olhos?
27  Ele lhes respondeu: Já vo-lo disse, e não atendestes; por que quereis ouvir outra vez? Porventura, quereis vós também tornar-vos seus discípulos?
28  Então, o injuriaram e lhe disseram: Discípulo dele és tu; mas nós somos discípulos de Moisés.
29  Sabemos que Deus falou a Moisés; mas este nem sabemos donde é.
30  Respondeu-lhes o homem: Nisto é de estranhar que vós não saibais donde ele é, e, contudo, me abriu os olhos.
31  Sabemos que Deus não atende a pecadores; mas, pelo contrário, se alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a este atende.
32  Desde que há mundo, jamais se ouviu que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença.
33  Se este homem não fosse de Deus, nada poderia ter feito.
34  Mas eles retrucaram: Tu és nascido todo em pecado e nos ensinas a nós? E o expulsaram.

O fato extraordinário comprova a procedência do poder que o realizou. O texto em análise demonstra a insistência das autoridades religiosas em buscar uma resposta racional para o ocorrido. Por outro lado, também apresenta a impaciência do curado e seus atos de coragem e renúncia: (i) confrontando os seus inquiridores de forma extremamente ousada – “quereis vós também tornar-vos seus discípulos?”;  (ii) declarando a incompetência deles em identificar quem era aquele que realizou tão grande milagre e sua procedência – “é de estranhar que vós não saibais donde ele é”; (iii) usando argumentos teológicos incontestáveis – “Deus não atende a pecadores” (Jó 27.8-9; Sl 66.16-19; Pv 15.29; Zc 7.13); (iv) defendendo o caráter piedoso daquele que o curou – Jesus – que foi atendido devido à sua condição espiritual aceitável diante de Deus – “se alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a este atende.”; (v) reportando-se à ausência de evidência de milagres como o que nele se realizou na história. A literatura e as tradições judaicas creditam 62 milagres a Moisés. Entre estes, nenhum de cura de cegueira de nascença; (vi) defendendo que o seu benfeitor não era apenas um profeta, não era apenas um homem piedoso, mas alguém provindo de Deus. Suas respostas incisivas foram tão impactantes que os seus inquiridores ficaram sem argumentos e de tão humilhados decidiram expulsá-lo.

As reações do homem curado servem de bom exemplo para os regenerados quando confrontados, principalmente pelos incrédulos e opositores da fé cristã. Certamente aquele homem foi assistido por Deus nas suas respostas e a promessa que recebemos é que o Espírito Santo há de nos assistir (Jo 14.26; 16.13).  

l) É o agente que não apenas transforma, mas conduz: (vv. 35-38)

35   Ouvindo Jesus que o tinham expulsado, encontrando-o, lhe perguntou: Crês tu no Filho do Homem?
36  Ele respondeu e disse: Quem é, Senhor, para que eu nele creia?
37  E Jesus lhe disse: Já o tens visto, e é o que fala contigo.
38  Então, afirmou ele: Creio, Senhor; e o adorou.

Percebe-se um conhecimento progressivo de Jesus, por parte daquele que fora cego, que culmina no crer e adorar: (i) Um homem chamado Jesus (v.11); (ii) É profeta (v.17); (iii) Alguém que teme a Deus e pratica a sua vontade (v.31); (iv) “Creio, Senhor; e o adorou.” (v.38).

O apóstolo Paulo nos apresenta a salvação como um processo contínuo, algo a ser desenvolvido: “Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor;” (Fp 2.12).  É preciso crescer na fé: “antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.” (2Pe 3.18a) . A figura do leite, como alimento infantil, e a expressão “não sejais como meninos” é mencionada algumas vezes referindo-se àqueles que precisavam crescer e amadurecer espiritualmente (1Co 14.20; Ef 4.14; 1Co 3.2; Hb 5.12-13; 1Pe 2.2).

A pública declaração de fé daquele homem quando do seu encontro com Cristo, nos remete à prática da Profissão de Fé e Batismo dos regenerados em Cristo.

Por fim, após a declaração de fé daquele homem, registra o texto bíblico – “e o adorou.”. Essa atitude de adoração será tanto mais expressiva quanto maior for o nível desse conhecimento de Cristo e a proximidade dele. Essa cena nos remete à figura da Ceia do Senhor, o outro rito praticado pela igreja – “fazei isso em memória de mim”.

m) É o agente que produz separação entre os homens (vv. 39-41)

39   Prosseguiu Jesus: Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos.
40  Alguns dentre os fariseus que estavam perto dele perguntaram-lhe: Acaso, também nós somos cegos?
41  Respondeu-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado algum; mas, porque agora dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado.

Saindo de cena as narrativas da cura, dos interrogatórios e do encontro do homem curado com Jesus, o texto bíblico apresenta o Senhor Jesus aproveitando o ocorrido para transmitir uma preciosa lição:

– Os que reconhecem a sua “cegueira” e se submetem à operação divina recebem a “visão espiritual”, a salvação eterna;

– Os que não reconhecem a sua “cegueira” e não se submetem à operação divina permanecem sem a “visão espiritual”, e estão perdidos eternamente.