A Cura de um cego em Betsaida (Mc 8.22-26)

Introdução

Não há de passar despercebido ao leitor mais atento, a grande incidência de pessoas cegas no tempo de Jesus, registrada nos Evangelhos. As palavras “cego” ou “cegos” ocorrem 49 vezes nos Evangelhos. Assim como a lepra (também com alta incidência naquele tempo) foi usada para tipificar o pecado, a cegueira foi usada por Jesus, em muitas ocasiões, para tipificar a cegueira espiritual de Israel, principalmente dos seus líderes religiosos.

Na sinagoga de Nazaré Jesus leu no livro do profeta Isaías um texto contendo “….e restauração da vista aos cegos,…” (Lc 4.18) e afirmou que essa Escritura estava se cumprindo (Lc 4.21). E, ainda como prova a João Batista, de que ele era o Messias, mandou dizer-lhe: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho.” (Mt 11.5). Alguns viram nesse milagre inédito na história, de restauração da vista aos cegos, uma evidência da messianidade de Jesus (Jo 9.32; 10.21; 11.37).

Por conta desse contexto social, algumas expressões foram bastante usadas: “… Pode, porventura, um cego guiar a outro cego?…” (Lc 6.39); “Deixai-os; são cegos, guias de cegos.” (Mt 15.14a); “Ai de vós, guias cegos, que dizeis:…” (Mt 23.16), este último condenando a hipocrisia e a cegueira espiritual dos escribas e fariseus (Mt 23.1-39). Apesar dos muitos sinais e milagres realizados por Jesus, muitos não creram, para que se cumprisse a profecia de Isaías: “Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim curados.” (Jo 12.40).

Havia muitos cegos aguardando a cura (Jo 5.3). Também há, nos Evangelhos, o registro genérico da cura de muitos cegos (Mt 11.5; Lc 7.22; Mt 15.30-31; Mt 21.14), além de outros enfermos. Entretanto, podemos destacar o registro de cinco curas específicas; curiosamente todos do sexo masculino:

1º) O endemoniado cego e mudo (Mt 12.22-37).
2º) Dois cegos (Mt 9.27-31).
3º) O cego de Betsaida (Mc 8.22-26).
4º) O cego de nascença (Jo 9.1-41).
5º) O cego Bartimeu (Mc 10.46-52; Mt 20.29-34; Lc 18.35-43).

Por que havia tantos cegos no tempo de Jesus?

A grande incidência de cegueira pode ser atribuída a uma combinação de fatores ambientais, sociais e médicos, tais como:

  • Doenças como o tracoma, uma infecção bacteriana do olho, eram comuns na antiguidade. O tracoma e outras infecções oculares que afetam os olhos também contribuíam para a perda de visão, se não fossem tratadas adequadamente.
  • A falta de condições adequadas de higiene e saneamento, água contaminada,  contribuíam para a disseminação de doenças infecciosas que podiam afetar os olhos.
  • A deficiência de nutrientes essenciais, como a vitamina A, é conhecida por causar cegueira. A dieta da época podia ser inadequada em termos de nutrição, especialmente para as classes mais pobres.
  • A medicina naquela época não tinha o avanço necessário para tratar muitas das condições que causavam cegueira. Não havia antibióticos para tratar infecções bacterianas ou conhecimento suficiente sobre a prevenção de doenças oculares. A pobreza limitava o acesso das pessoas a cuidados médicos básicos, tornando-as mais vulneráveis a condições que poderiam levar à cegueira.
  • Lesões nos olhos resultantes de acidentes de trabalho, especialmente em ocupações perigosas, também poderiam levar à cegueira. Sem tratamento adequado, essas lesões muitas vezes resultavam em perda permanente da visão.

A presença de muitos cegos nas narrativas bíblicas reflete essa realidade histórica e, também, enfatiza o papel de Jesus, propiciando a cura física e espiritual às pessoas marginalizadas da sociedade. Vejamos, então, alguns aspectos dessa cura:

1) Conduzido a Jesus

Os Evangelhos começam narrando os trinta anos preparatórios e, na sequência, o ministério público de Jesus, começando na Judeia. Depois, com a prisão de João Batista, Jesus se desloca para um ministério na Galileia, durante o qual acontece a execução de João Batista, pelo rei Herodes (Mt 14.1-12).  Nesse tempo a fama de Jesus já havia se espalhado por toda a parte, a inveja e ameaça dos religiosos da época aumentava. Inicia-se, assim, o período das retiradas de Jesus, um tempo de instrução especial aos doze. Ali, bem ao norte, atravessando o mar da Galileia, ele chegou à cidade de Betsaida.

Como já se tornara costume acontecer, levaram um cego à presença de Jesus e, é interessante observar que rogaram-lhe que o “tocasse”, naturalmente com o sentido de “curasse”.

“E todos da multidão procuravam tocá-lo, porque dele saía poder; e curava todos.” (Lc 6.19)

Há vários textos que explicitam essa vontade e crença do povo de tocar em Jesus, ou nas suas vestes, para ser curado (Mc 3.10; Lc 6.19; Mc 6.56; Mt 14.36). Um dos casos mais emblemáticos é o da mulher que sofria de uma hemorragia havia 12 anos (Mc 5.25-34; Mt 9.20-22; Lc 8.43-48).

Eles também rogavam-lhe que Jesus impusesse as mãos sobre enfermos, “Então, lhe trouxeram um surdo e gago e lhe suplicaram que impusesse as mãos sobre ele.” (Mc 7.32), ou que as tocasse com vistas a cura (Mc 8.22).

2) Conduzido por Jesus

a) O deslocamento

O primeiro aspecto que chama a atenção neste texto é o fato de Jesus conduzir este cego para fora da aldeia. Foi a primeira vez que ele fez isso? Por que teria feito isso? Antes de tudo, é sempre bom lembrar do risco que se corre ao tentar interpretar o que Jesus, um ser divino, estava pensando ou qual era o seu propósito ao realizar certas ações, quando ele mesmo não nos revela isso no texto bíblico. O que nos cabe fazer é sugerir uma interpretação, com o devido embasamento. Então, podemos mencionar os seguintes motivos:

1º) Incialmente, é preciso esclarecer que em outras ocasiões Jesus também levou pessoas para um tratamento à parte (Mc 7.33; 5.40).

2º) Jesus parece querer dar um tratamento diferenciado a esse homem. Ele é retirado do meio da multidão, para ser tratado à parte, para propiciar um ambiente mais privado e pessoal. Isso permitiria ao homem concentrar-se exclusivamente em Jesus, sem as distrações ou pressões da multidão.

3º) Jesus não quis que a multidão acompanhasse essa cura. Afinal, não era sua intenção dar espetáculo para eles; provocar sensacionalismo. Ele não desejava ser seguido apenas por causa de suas obras milagrosas. Ele queria que as pessoas o seguissem pela fé e compreensão de sua mensagem, não apenas pelos sinais e maravilhas. Além disso, o que ele fazia, fazia por misericórdia e não para obter popularidade ou fama.

4º) Betsaida significa “casa de pesca”. Alguns estudiosos sugerem que Betsaida era uma cidade que tinha rejeitado as obras de Jesus (cf. Mateus 11.21). Assim, tirar o homem cego da aldeia pode ter sido um ato simbólico de separação do ambiente de incredulidade.

b) O método

O poder de Jesus  não sofre influência ou limitações de método. Na sua soberania, ele usa o método que quer, pois este é apenas um detalhe. Basta uma palavra sua, de perto (Mc 9.25) ou à distância (Mc 7.29-3). Às vezes o milagre acontecia com a imposição de mãos (Lc 4.40; 13.13). Em certa ocasião ele tomou a sogra de Pedro, pela mão, e a febre a deixou (Mt 8.15); em outra, ele tomou a filha de Jairo, pela mão, ordenou, e ela se levantou da morte (Mc 5.41).

Havia algo de muito especial no toque de Jesus e ele tinha uma preferência em fazê-lo. Ele tocou o leproso, o que ninguém fazia, e a sua saúde foi transferida para o enfermo, e não o contrário (Mc 1.41-42).

Há três relatos nos Evangelhos nos quais Jesus não apenas tocou o enfermo ou deficiente, mas tocou-lhe a parte do corpo afetada e usou saliva: (i) no surdo-mudo, pôs os dedos nos ouvidos e tocou-lhe a língua com saliva; (ii) no cego de nascença, aplicou-lhe um lodo de saliva e terra nos olhos e o enviou a se lavar no tanque de Siloé (Jo 9.6); e, aqui, (iii) no cego de Betsaida, aplicou-lhe saliva nos olhos (Mc 8.23).

Nos 5 casos de cegos curados, mencionados anteriormente, o resumo dos métodos é:

CASOREF BÍBLICAMÉTODO
O endemoniado cego e mudoMt 12.22-37Não mencionado
Dois cegosMt 9.27-31Tocou-lhes os olhos
O cego de BetsaidaMc 8.22-26Aplicou saliva nos olhos e impôs as mãos
O cego de nascençaJo 9.1-41Cuspiu na terra, fez lodo e aplicou nos olhos
O cego BartimeuMc 10.46-52; Mt 20.29-34; Lc 18.35-43Tocou-lhe os olhos

c) Cura progressiva?

Conforme já exposto, esta cura tem muito em comum quando comparada a outras. Entretanto, há aqui alguns aspectos incomuns, ou, até mesmo inéditos ou exclusivos. Por exemplo, Jesus “avaliar a eficácia da cura” perguntando ao curado: “Vês alguma coisa?”. Nos cinco casos de cura de cegueira já citados, somente neste temos esse tipo de registro. A outra peculiaridade e ineditismo desta cura reside no fato dela ter ocorrido em duas etapas. Nas outras quatro, os curados recuperaram a visão imediatamente! Diante dessa excepcionalidade os estudiosos e comentaristas bíblicos se sentem desafiados a buscar explicações. Então, apresentamos aqui algumas dessas tentativas, bem como, algumas considerações:

1ª) Diante da realidade de quem era Jesus, o Filho de Deus, do seu inigualável poder e de todos os sinais, milagres e prodígios que realizou, não há que pensar ou supor que “faltou-lhe poder para realizar a cura total, de uma só vez”.

2ª) Pela sua resposta, percebe-se que o homem, anteriormente cego, havia recuperado a visão, porém, não com total nitidez, pois ele via os homens como árvores, andando. Então, isso acarretou uma segunda intervenção de Jesus, através do toque das suas mãos nos olhos dele, completando a cura. Assim sendo, estamos diante de uma cura em duas etapas. Este milagre é o único relato de uma cura progressiva nos Evangelhos. Por que? Qualquer tentativa de explicação, como as apresentadas abaixo, pode não passar de mera suposição ou especulação.

a) É fato notório que, diante do enfermo/deficiente, ou daquele que rogava por este, em inúmeros casos, podemos perceber que Jesus tinha certa praxe quando interagia com eles: “– O que queres que eu faça?”; “– Credes que eu possa fazer isso?”; “– Seja feito segundo a vossa fé.”; “– Vai, a tua fé te salvou.” Isso deixa claro que Jesus estava interessado em algo mais do que a cura física, isto é, a cura espiritual.

b) É importante ressaltar que a cura operada por Jesus é verdadeiramente um milagre extraordinário. Conhecemos relatos de pessoas que, por exemplo, operaram o joelho ou a perna, ficaram um tempo com a perna imobilizada, depois precisaram de vários meses de fisioterapia intensa para voltar a caminhar normalmente. Então, imaginem um coxo de nascença ser curado e imediatamente começar a caminhar (At 3.8), ou um cego voltar a enxergar, em plena luz do dia, sem qualquer período de adaptação?

c) Não se pode atribuir o poder da cura à fé da pessoa, pois o poder estava em Jesus. De qualquer forma, não se sabe se Jesus estava provando a fé daquele homem, vinculando a fé dele à sua cura. Sua fé talvez fosse parcial, gerando uma cura parcial. Então, quando algo de extraordinário começou a acontecer com a sua visão, sua fé desabrochou e Jesus completou a cura. Isso pode ilustrar que a cura física e espiritual nem sempre é instantânea e pode ocorrer em etapas.

d) Alguns interpretam essa visão parcial como uma metáfora para a visão espiritual. Antes de serem plenamente iluminados pela fé, as pessoas podem ver “sombras” da verdade. A completa clareza vem com um entendimento e revelação mais profundos.

e) Há ainda quem diga que Jesus agiu desta forma, realizando um milagre inicialmente menos impressionante, com o fim de conter sua fama e evitar mais perseguição. Outros sugerem que essa narrativa se torna ainda mais impressionante, conferindo mais autenticidade ao registro bíblico.

Enfim, todas as hipóteses sugeridas acima podem não passar de mera elucubração ou especulação. A única certeza que temos é que Jesus não fracassou, por ter que repetir ou completar o milagre. Ele tinha um propósito e, certamente, o realizou! Quanto a nós, não é razoável ficar gastando tempo com aquilo que não nos foi claramente revelado.

3) Conduzido para uma nova vida

Após o milagre, Jesus o orientou a não entrar na aldeia, para não propagandear o milagre que recebera. Isso também aconteceu após outras curas e podemos deduzir que havia nisso a intenção de contenção da sua fama e popularidade e, por outro lado, a bênção era para aquele homem e a lição maior, para os seus discípulos.

Quando uma pessoa tem um encontro com Jesus, nunca volta pelo mesmo caminho. A ida dele para casa nos remete à ideia de que é ali o seu primeiro campo missionário; seu lugar de viver e testemunhar o que Deus fez em sua vida.

Além disso, este seu encontro com Cristo proporcionou-lhe uma restauração de vida, o resgate da sua dignidade, uma nova vida. Na sociedade da época de Jesus, a cegueira era vista de várias maneiras:

– Acreditava-se que a cegueira era consequência do pecado (Jo 9.2). Esse pensamento causava uma exclusão da graça e da misericórdia de Deus, bem como excluía o cego do convívio das pessoas.

– Os cegos eram muitas vezes marginalizados pela sociedade. Eles não eram apenas ignorados, mas também eram frequentemente esquecidos nos grandes eventos e celebrações.

– Na Judéia antiga, dos tempos de Jesus Cristo, o destino das pessoas que tinham qualquer deficiência era esmolar para conseguir sobreviver. Os cegos, os amputados, os paralíticos pelas mais variadas causas, acabavam expostos pelos caminhos, ruas, logradouros e praças públicas.

– Havia restrições religiosas, isto é, de acordo com a Lei, um cego ou alguém com defeito físico, não poderia servir a Deus no ministério sacerdotal (Lv 21.16-24).

Conclusão

O milagre do cego em Betsaida é rico em simbolismos e ensinos espirituais. Jesus levar o homem para fora da aldeia sublinha a necessidade de separação de um ambiente de descrença e de criar uma conexão pessoal e íntima com aqueles a quem ele cura. A visão parcial do homem pode ilustrar tanto a progressão da cura física quanto o crescimento gradual da compreensão espiritual.

“Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais” (Mc 8.18)

Há algumas lições espirituais que podemos extrair desta cura em Marcos 8.22-26 e seu contexto. Tudo começa quando Jesus embarca rumo a Betsaida, iniciando a terceira retirada (Mc 8.13). Então, não é difícil perceber quatro cenas de falta de visão ou falta de discernimento:

1ª) Falta de visão espiritual dos discípulos (Mc 8.13-21).

Os discípulos confundiram o “fermento dos fariseus e de Herodes”, com o fermento de pão. Eles não discerniram que Jesus falava da hipocrisia dos fariseus e do secularismo e mundanismo de Herodes.

2ª) Falta de visão física e espiritual do cego de Betsaida (Mc 8.22-26).

O cego nada enxergava. Depois do primeiro toque de Jesus, ele começou a ver alguma coisa, mas ainda não conseguia distinguir pessoas, de árvores. Depois do segundo toque de Jesus, ele passou a ter uma visão totalmente restaurada. Da mesma forma, a visão espiritual é progressiva.

3ª) Falta de visão espiritual do povo (Mc 8.27-30).

O povo não conseguia discernir que Jesus era o Messias, o Filho de Deus, e não mais um profeta. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam; não perceberam o tempo da sua visitação. Entretanto, tendo Pedro como porta voz, aqueles discípulos declararam que ele era o Cristo, o Messias prometido.

4º) Falta de visão espiritual de Pedro (Mc 8.31-33).

Por um momento faltou a Pedro a visão espiritual e discernimento da missão de Jesus, do Messias, da necessidade de seu sofrimento, morte e ressurreição.

Enfim, todos eles e todos nós precisamos da iluminação de Deus para enxergar além da visão física; de uma correta e progressiva visão espiritual que nos permita discernir as coisas espirituais, a vontade divina.

Bibliografia
1. Bíblia Sagrada (SBB – Almeida Revista e Atualizada – ARA).
2. Bíblia Online – SBB.
3. Watson, S. L. e Allen, W. E. – Harmonia dos Evangelhos.
4. R. N. Champlin, Ph. D. – O Novo Testamento Interpretado – Versículo por versículo – MILENIUM Distribuidora Cultural Ltda.
5. Internet / ChatGPT.